quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

O Livro Exterminador

Querida Vera,

Durmo pouco nas últimas noites, pelo menos nas últimas cinco, e literalmente não preguei os olhos nesta, de modo que te escrevo haja vista sua porcentagem de culpa, senão toda a culpa (diria eu um pouco pretensiosa), mas sabes que de vez em quando sou dada a esquisitices, ainda mais nestes dias, em que tomo cada vez mais comprimidos controlando infindáveis dores de cabeça e cólicas que você tão bem conhece. Tudo começou na semana passada, quando em visita a sua amiga na casa de campo nos encontramos por um aprazível acaso, você me apareceu toda encantada com a fotógrafa francesa que acabava de conhecer, poupemos por ora os detalhes bíblicos deste conhecimento que deixo para quando nos virmos de novo (se é que isso por ventura ocorrerá ainda nesta vida). Nos sentamos as quatro no jardim, logo depois do almoço, sobre o cobertor estendido na grama e protegidas pela sombra do pequizeiro, lá ficamos bebendo vinho, falando de bundas e, o detalhe agora crucial, em algum momento você se levantou maquinalmente sem dizer uma palavra (na hora isto não me soou estranho, mas quanto mais repasso este momento em minha cabeça, mais acredito que você estava sob influência de alguma droga, paraste com as bolinhas? Lembro até mesmo dos seus vívidos olhos vermelhos, que se tornam mais vermelhos a cada vez que relembro a cena... cansei-me de indicar-te o uso de colírios) e voltou com uma pilha de livros de contos recém comprados em um sebo na cidade na mesma manhã, te conto tudo em detalhes para que você possa recompor completamente este dia em sua mente de modo a me ajudar a sair do meu suplício e a evitar que você recaia no mesmo erro. Os livros eram todos muito sebosos, como muito bem indica o nome do lugar onde os foste encontrar, e me interessei logo pelo mais carcomido (deves entender bem o porquê se lembrares do dia em que saí com Luana, passou, passou...), intitulado “El museo de los esfuerzos inutiles”. Me interessei mais pela capa que pelo título (lembra da pobre ninfeta sedenta de carinho sentada em uma cadeira?) e abusada que sou fui logo pegando (aquilo foi mais pegar do que pedir... sejamos honestas!), você nem hesitou em emprestar-me o livro retirando às pressas os demais exemplares do cobertor e levando para dentro de casa (achou que eu não tivesse percebido? quisera eu tivesses levado este contigo também). O tal livro cambaleou por uns dias da sala pra cozinha e da cozinha pro quarto no meu apartamento, ficando a espreita sob o criado mudo, até que numa daquelas minhas muitas insônias comecei a lê-lo na cama escorada no travesseiro. Li alternadamente alguns contos curtos, escolhidos justamente pelo menor número de páginas (bem vês que o passar dos anos em nada me acrescentou paciência), até que a altas horas me deparei justo com o primeiro, homônimo ao livro, e quase morro de medo ao encontrar o meu nome nas entrelinhas de tal conto. Nome e sobrenome. Não restam dúvidas de que uma parte de mim paira entre os inúmeros catálogos de esforços inúteis, e desde esta noite sou outra pessoa, a compreensão de que minha vida se resume a um grande esforço inútil não me era de todo ignorada, mas encontrar minha vida assim devassada por uma estranha, que além de tudo escreve como se fosse um homem (e veja bem que sou eu quem escreve esse comentário leviano, eu que já saí por aí de terno e gravata, só pra atordoar esse povo preconceituoso... isso para que entendas que o comentário é sem mágoas), ter minha vida exposta de modo que eu não possa negá-la ou tentar justificar ao menos algumas passagens, como o fim de semana que passei em vão tentando fazer um belo bolo de chocolate para o teu aniversário com letras escarlates no topo anunciando teu nome circundado por rosas de açúcar (você jogou aquela foto fora, não foi?), ou quando passei meses convencendo pessoas a votar pela quarta vez no mesmo candidato a presidente da república para que as coisas mudassem pra melhor, e cá estamos decepcionados e desapontados como crianças às quais se promete um passeio ao zoológico e se leva ao velho e conhecido parquinho na frente de casa com os brinquedos de sempre. Águas passadas; tudo isso me desordena.

Este acontecimento causou-me tal entorpecimento de alma que desde aquela noite não saio mais de casa e quase não durmo, como bem te disse, recuso-me mesmo a atender ao telefone receosa de que possa ser alguém que por ventura tenha visto também o meu nome e queira tirar satisfações sobre algumas passagens mais sombrias de meus feitos, somos todas humanas afinal, demasiado humanas, não é mesmo? Lembra do dia em que ensaiávamos uma aula de anatomia com uma linda borboleta azul encontrada moribunda no meio do gramado? E os beliscões dados às escondidas naquelas crianças mal criadas no cinema, e foi feitiço contra o feiticeiro neste dia, visto a choradeira desencadeada na sala escura (perdoa-me se hoje não estou para piadas, mas o assunto exige seriedade).

A comida está praticamente terminando por aqui e a faxineira bateu insistentemente na porta nos dois primeiros dias, agora se foi. A louça se acumula na pia e vislumbro o momento em que aquela massa inerte sairá andando pela casa espalhando sujeira e confraternizando com a grossa camada de poeira que posso ver sobre alguns móveis. Está insuportável continuar neste lugar, mas imagino que mais ainda estará lá fora na companhia de outros seres humanos cheios de infindáveis esforços a cumprir. Perdi a ignorante felicidade que me permitia seguir adiante e não sei o que colocar no lugar.

Tentei queimar o livro, mas forças superiores me impedem, me contorço em frente ao espelho procurando vestígios do 666 na minha cabeça e nada, sigo sem explicações (isso me lembra o seu término com a Telminha, recuperada do trauma?).

Como quando tenho fome, cochilo quando posso e olho pela janela, olho muito, com aquele olhar fixo parado, perdido no tempo, relembrando coisas que fiz ou deixei de fazer e assombrada por tamanho despeito da escritora, é incrível como nos dias de hoje a vida alheia, a despeito da individualidade, pode ser exposta dessa maneira, imagino que a pobre criatura tenha porcentagem junto à categoria dos psicanalistas, melhor razão não poderia existir para justificar tamanha falta de compostura.

Esta carta deverá servir-te como aviso, primeiro para que quando encontres o meu corpo estendido no chão deste apartamento não o toques, imagino que possa ser contagiosa essa doença n’alma e, em segundo, que te recuses a ler tal conto por mais que alguém insista, que te prometa milhões em troca de tal leitura, ou mesmo as mais maravilhosas mulheres do mundo a teus pés (e bem sei que tua carne é fraca!), imagino o que pode ocorrer a ti se por ventura descobres teu nome inscrito também nas entrelinhas, cometes um ato de loucura, desfaçatez ou mesmo um assassinato. Digo isso por mim mesma, que me resignei à clausura até os últimos dias e, por favor, não entendas esta por um pedido de apelo, aproveita tua vida enquanto podes, preenche bem de esforços inúteis, mas não olhes nunca para trás, não faça cálculos melindrosos pesando pesares, olha pra frente, sempre pra frente e nunca pro livro ao teu lado.

Da eterna amiga,
Cristina.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gostei .. .

cacau segobia disse...

Nossa chérie, já me pediram tantas vezes pra não virar personagem...