domingo, 2 de junho de 2013

Inocência


Isso de enamorar-se de mulheres, mas o que era isso afinal? Embaixo da sombra fresca da árvore e olhos fechados, ela derretia nas mãos de Tilda a massagear-lhe os pés. Tilda dos cabelos cor de fogo que encontrara num desses jantares enfadonhos e lhe pegara pela mão e tudo parecera tão natural. Conversaram a noite toda vendo a lua e descobrira quão diferente podia ser a vida, como haviam vidas distintas a serem vividas. Tilda que na despedida lhe roubara um beijo lépido. Era tudo tão diferente, tudo tão igual. 

sábado, 25 de maio de 2013

A pomba gira





Injetei nela, sem culpa, uma substância tóxica produzida pela raiva acumulada. Entre muitas pessoas num  café lotado numa manhã de sábado, falando calmamente, destilando veneno. Sublimei movimentos truculentos com as mãos ocupadas por uma xícara de café e um cigarro, e do alto da soberba escada de vento disse tudo o que devia e o que não devia, dei as costas e subi a ladeira perseguindo o som distante da roda de samba.

domingo, 19 de maio de 2013

Muito pouco


O amor é. Ela disse num passe de mágica, num passe de dança. E rodopiou, rodopiou até o fim do salão no seu vestido de seda, e deixou-se cair e rastejar pelo assoalho até quase desaparecer, o corpo encolhido, minúsculo, rendido. No segundo seguinte já a outra ia na mesma direção, no mesmo movimento, levemente sobrepondo-se ao outro corpo, misturando-se. Desejando. 

domingo, 12 de maio de 2013

Noite de domingo


Deitada ao meu lado com seus longos cabelos desgrenhados, um shortinho curto mostrando longas e bem delineadas pernas, à vontade, tanto a vontade que me intimidava, uma timidez a olhos vistos pois que por dentro me corroía de tesão. Disse algo que não entendi, entretida que estava de desejo. Repetiu a frase que ecoou na minha surdez. E assim, num sorriso delicioso de completa compreensão da situação inusitada, mudou de direção, porque você não vêm aqui e me dá um beijo?

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Uma longa história: última chance


Pois se o prenúncio era anunciado, nada como me preparar nesse momento de aceitação. Não sem antes uma segunda tentativa nada digna, fiz a cena completa, comecei falando que isso não era jeito de fazer as coisas tomando a decisão e só depois me avisando, e com todas as novidades culturais e dificuldades que encontraria por lá cercada por deusas negras altíssimas carregando seus pertences na cabeça ela ia acabar se encantando por alguém. E eu aqui no Rio de Janeiro com o apartamento cheio de lembranças nossas, com seus livros de medicina me bisbilhotando lá do alto da estante. Era jogo sujo, eu sabia. E quem se importa?! Além do que provavelmente a gente só se veria através do computador, isso quando ela conseguisse conexão e a internet aqui de casa resolvesse funcionar direito. Sim, ela se solidarizou com a parte triste da história, afinal essa era a parte triste e nos consolamos um bocado entre beijos e afagos. Mesmo assim no meio da noite me restou ir ao banheiro e chorar baixinho atrás da porta.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma longa história: o jantar


Se soubesse que ela iria se atrasar tanto para o jantar, poderia bem ter assistido um filme na mostra de cinema nesse meio tempo, havia um novo filme lésbico cooperação reino unido e frança que prometia, afinal as francesas tem sempre um jeitinho meio sapa que confunde a cabeça de todo mundo, deve ser a tradição de Emmanuelle no cinema. Tocou a campainha, a porta estava novamente travada por dentro, abri efusivamente tropeçando nos pés de ansiedade, seus olhos brilharam de espanto ao ver a mesa posta com direito a candelabros, uma taça de champagne quente prontamente esvaziada e reposta. O cansaço disperso no vislumbre de tudo em seu devido lugar, por vezes a felicidade é simples, bem simples. Jantamos o salmão requentado iluminado pela bruxuleante luz das velas, mas não menos saboroso, a sobremesa foi em cima da mesa mesmo, com as roupas retiradas às pressas, com os beijos mais profundos, como se lá fora fosse o fim do mundo. Mesmo assim, o bilhete de viagem para o Zaire já fora comprado. Era o prenúncio do fim do mundo.

ps.: Geraldo que me entende, queria voltar a ler as novidades.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Uma longa história: primeira tentativa

Seriam duas incansáveis semanas para mostrar a ela como era bom morar na cidade que dizem por aí é maravilhosa, que nem é tão quente como o Zaire. O ser humano é pego pelo estômago e nada como um jantar a luz de velas em casa, só nós duas, de surpresa. Aproveitei o sábado, que ela trabalharia, para aprender a cozinhar num curso rápido na internet: cozinhando com o google. Tinha exatamente duas semanas para convencê-la a fazer humanidades aqui no Brasil mesmo ou, melhor ainda, na minha casa. Claro que depois de mais de dois anos as coisas andavam meio mornas, meu amor para cá e para lá pouco se escutava. Decidido o cardápio corri ao mercado no sábado pela manhã, eu e todas as pessoas com famílias grandes e sem tempo durante a semana, purgatório nos corredores apinhados de gente, o inferno seria a fila. Salmão, manga, alho, limão, arroz de risoto e o santo youtube para transformar isso tudo em comida, a sobremesa estava salva com uma torta de chocolate e champange. Falei com ela duas, três vezes ao telefone para tentar acertar a hora do jantar, mas minha amada era do tipo mudo de ideia com frequência. Haja vista a viagem para o Zaire. Difícil, nem o analista me convenceria que eu não podia fazer nada dessa vez para inverter a situação. Em casa, música alta, computador na cozinha e panelas a posto. Aproveitei para usar o avental que tinha comprado a mais de ano e nunca tinha usado, afinal quem usa avental para passar café e fritar ovo?O banho requeria atenção redobrada, momento de deixar as pernas e axilas lisinhas, fazer bem as sobrancelhas e a depilação da virilha certinha, sem um pentelho fora do lugar, se o jantar não impressionasse a sobremesa viria a caráter. Passei a tranca na porta de entrada para não ser pega de surpresa, roupa leve, segunda taça de champange na mão e uma expectatica de chega logo por favor.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Uma longa história: a notícia


Depois de dois anos dividindo a mesma cama, ela me olhou e disse que dali há duas semanas ia para o Zaire. O Zaire, isso mesmo, aqui do lado não é?
Foi difícil responder a algo tão inesperado, perguntei se ela não podia escolher ir para Belo Horizonte, até o Acre era mais perto. Não, a decisão estava tomada, ou fazia isso agora ou talvez nunca mais tivesse a oportunidade de aderir a uma organização médico-humanitária. Pelo visto os argumentos tinham sido todos preparados, e eu caía como um peixe na rede nessa informação toda. Depois de quase uma hora ouvindo explicações sobre a importânica das atividades, interrompi e perguntei algo que ao menos deveria entrar no contexto da situação, e nós?Não pensei muito sobre isso ainda. Bom havia alguma coisa sobre a qual ela ainda não tinha pensado muito, um pequeno detalhe. São só dois anos e você pode vir me visitar sempre que quiser. Claro, eu vou na internet e procuro um vôo saindo na sexta a noite e voltando, de preferência no domingo a noite já que eu e a torcida do flamengo trabalha na segunda feira pela manhã, Rio de Janeiro para o Zaire num preço bem bacana, simples, mesmo muito simples. Também disse que ela podia vir me ver quando quisesse, devido a rotação da terra e as correntes de ventos, a sua volta será mais rápida, você economiza um par de horas.
Tinha ainda duas semanas para fazer ela mudar de ideia, não ia ser fácil.

domingo, 27 de março de 2011

Na piscina

Foram as costas de Neusa, indubitavelmente a cena na piscina enquanto ela caminhava lentamente sob o sol de rachar, da parte mais rasa para a parte mais profunda da piscina. Neusa tinha medo da água, mas isso ela não sabia. As costas largas e definidas, será que faria sentido dizer costas tanquinho? Deu vontade de descobrir seu e-mail naquele instante para se declarar anonimamente, se declarar as suas costas ornamentadas pelo nó do biquíni e as tiras roçando a sua pele. Era sem dúvida a vizinha do nono andar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Diálogo Direto

- Hoje comemoramos quatro anos de namoro!
- Posso participar?

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Carro roubado

Em cada curva, olhando pela janela o asfalto, crescia um frio na barriga. Por pouco, muito pouco, ele não tombava, notícias de tombamento existiam dado os pilotos ao volante. Piloto em cima de ônibus velho e mal tratado, a vingança dele era com o pé abrupto no freio, o pé pesado no acelerador e a luta incesante por espaço com os carros pequenos. A cada movimento repentino, um rearranjo no interior do ônibus, um tal de cai para cá e para lá nada alegre depois de um longo dia de trabalho. A vista, nesse privilegiado lugar chamado janela, é da favela. Um tanto de reboco caindo, orifício sem janela, buraco de porta sem porta. Tem um brilho sobre um muro comprido que logo se desvenda em cacos de vidro refletidos pelos faróis dos carros. Completando a paisagem essa gente com cara de triste. Quando parece que a favela se foi, segue tudo igual, uma zona mais empobrecida que a outra, é tanto de coisa caída que, com a atenção no trânsito e a mão no volante, nunca se repara. Um livro é lido aos sobressaltos, que nessa cidade esquecida por políticos corruptos, nem o asfalto é liso. Esse é o caminho de casa: o inferno de uns e a realidade de tantos.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Quatro



E cá estou eu sentada uma vez mais na sua cama bem no meio de um feriado prolongado. É sexta feira à noite e os meus braços estão enrolados em volta do seu corpo, ela sentada no meu colo com o corpo encaixado. Eu posso sentir a sua respiração. Um suspiro mais forte sinaliza que talvez ela não esteja aqui.
Você não está aqui, está?
Ela enrijece o corpo e diz o que queria dizer há algum tempo:
Não.
Um vento fresco entra pela janela por onde se ouve o barulho das folhas das árvores farfalhando.
Você tem outra pessoa na sua cabeça?
Ela se demora uns segundos para responder, o que já é uma resposta, e mesmo assim opta por não mentir.
Sim, eu conheci alguém.
Tenho vontade de perguntar mais sobre ela, seu nome, como ela é, se é bonita. Mas isso abriria um caminho que eu não estou disposta a percorrer. Ela vira-se na minha direção e me abraça, ficamos face à face por uns instantes.
Você irá vê-la em breve?
No próximo feriado, eu acho.
Parece que ela se esforça em dividir a sua história comigo respondendo a todas as perguntas, eu já divido a história com ela.
Por que você não vai hoje mesmo viver essa situação?
Você não entende essa situação.
Sim, eu entendo.
Ela também tem outra pessoa.

domingo, 18 de abril de 2010

Cena 1


Duas calcinhas, uma branca, uma preta tipo boxer. Dois corpos se movimentam sobre a cama desalinhada. Na diagonal da cortina vermelha entreaberta uma vizinha atenta, uma das mãos à vista, a outra sinalizando masturbação. Risos e gemidos ecoam no vão central do hotel:
Está bom assim?
Um pouco mais para cima... isso, isso.
E agora, está bom?
Está bom!
Quanto?
Trinta e dois.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A casa vazia


Mais um copo era enchido com a vodca espessa vinda direto do congelador. Nalva bebia para lembrar das palavras que há muito não escrevia. Houve tempos em que bebia raiva, tristeza, melancolia e, muito freqüentemente, também alegria. Exagerava `a mesa os modos, as mãos sobre as pernas ao lado, roubava no banheiro beijos, ouvia retumbantes nãos na calada da noite. Na praia gelada se jogava na água fria com a lua. Pulava a fogueira com um copo de quentão na mão. Descia na correria ladeira embriagada. Nesse instante, caneta na mão, papel em branco e copo pequeno ao lado, motivo mais nobre que a poesia ela desconhecia.

sábado, 10 de abril de 2010

Vida de facebook


Era puro eu: acordei com uma ressaca da festa de ontem. Era pura alegria: hoje tenho um encontro mais tarde. Ego-trip: fotos e mais fotos minhas. Só futilidade: tomei um expresso na esquina depois de comer o almoço que cozinhei em casa. Era enaltação: recebi uma proposta de trabalho inacreditável. Exagero: exausta de tanta diversão. Pura chateação alheia: vou pegar o ônibus em quinze minutos uhu. Ansiedade postada por telefone: já a vejo sentada na mesa, uau muito linda. Infantilidade: só pode ser presente divino por eu ser tão legal. Desilusão: mesa errada, pqp.

De uma beleza sem igual



conto de Adriana Lisboa, é só clicar aqui.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Na cama

Tem mais?
Se eu tomar mais uma xícara, vou passar a noite toda mijando.
O que tu tá lendo?
O outro, de cinema. Esse texto é clássico.
Tá bom?
Tá, esse cara é de Sampa, parece que ex professor da USP.
...
Vai dormir?
Vou daqui a pouco, e tu?
...
Meu amor?
Humm?!
Tu sabe que mesmo dormindo eu continuo te amando?!

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Preconceito







Fiquei com saudades dos amigos e comecei a procurá-los na internet. Alguns apareceram, o seu nome foi super fácil Popa. De lá peguei o seu e-mail. Lembra da Marcinha? Essa eu não encontro de jeito nenhum – insatisfação.
Eu também perdi o contato dela completamente. Dela e de todo o resto, uma pena.
Faz quantos anos mesmo?
Ihhh, desde o segundo grau, uns vinte.
Agora nem segundo grau é mais segundo grau, faz tempo mesmo.
Mas afinal, o que você tem feito?
Tô morando em São Paulo desde o final da graduação, saí de lá e nunca mais voltei. E você?
Tô aqui também, trabalhando num banco, eu e meu marido. Moro numa casa com a minha filha adolescente e um outro menor.
Bem bacana, a vida passa. E qual o nome deles?
Ela é a Maria Eduarda, presta vestibular esse fim de ano. Ele é o Nathanael, está terminando o primário – orgulho. E você, casou?
Eu trabalho numa clínica veterinária e moro com a minha companheira faz dez anos. Não temos nem filhos, nem gatos, nem cachorros - risos.
Ah, então você é gay - surpresa. Legal. Vamos marcar um encontro pra bater um papo dia desses.
Vamos sim, um almoço de domingo.
Eu volto a ligar!Beijos querida.
Beijo grande.

Nunca mais ligou.


sábado, 27 de março de 2010

Tudo é possível


Ela caminha pela calçada lentamente na direção de Alice, mesmo tendo reconhecido-a faz alguns instantes os passos nem aceleram nem cadenciam, o coração talvez de um sinal distante de palpitação. Vem trajada com saia e blusa coloridas com alusão ao verão ensolarado, e havaianas como pede uma cidade cerceada pelo mar e montanhas. Olham-se, cumprimentam-se e se põem a nossa disposição para detalharmos o encontro.

terça-feira, 9 de março de 2010

Sanidade



Cada vez que virava o rosto, uma peça sumia.
Na tela, o filme discorria sofridão.
Primeiro foi a camisa e os seios ficaram a mostra. Graúdos e solenes.
Interna no sanatório, a moça parece esquizofrênica, de um lado gente gemia, do outro nariz e boca se retorciam.
Era a quentura do quarto ela dizia, mas a janela não abria.
Saída, sem ser fugida, depois de oito anos para a casa da família ela voltava, para os livros e poesias.
No sofá, sem nem notar, a calça de pijama se desfazia.
Um primeiro amor veio tardio, desejado e abusado junto com o livro publicado.
Coluna ereta e olhar atento, sobre a calcinha somente ela se equilibrava.
E os obstáculos se foram, um a um, derrubados pela inocência, livro e mais livro ela escrevia.
Antes que sozinha a calcinha se fosse, dei a mão, desliguei o vídeo, e partilhei a alegria.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Da teoria a prática


Esse era sem dúvida um ângulo novo. Demasiada lindeza. Consequência direta da massagem para irrigação vaginal, desprovida de intenções sexuais, descrita num sítio com fotos de pessoas, digamos que, mesmo na mente de um ingênuo leitor, com poses de pouco teor profissional. Compensou a leitura de diversos parágrafos onde foram nominadas massagens e seus efeitos compensadores efetuados, diga-se de passagem, mediante o pagamento simbólico de algo em torno de trezentos reais por sessão. Obtinha-se orgasmos, orgasmos simples, duplos e, para os mais pretensiosos, mesmo múltiplos; eram devidamente mapeados o famoso ponto G e mais alguns pontos desconhecidos da cultura ocidental e imprescindíveis para o prazer total. A massagem poderia ser efetuada a duas, ou quatro mãos, imagino eu que mediante alguma combinação antecipada, provavelmente o cliente, ou talvez paciente, pudesse escolher o número de mãos (ímpares também sendo possível, é claro!). Confesso que depois de menos de uma hora clicando num e noutro parágrafo eu mesma já estava em posição pouco confortável em frente à tela do computador, pensando nas tantas mãos e orgasmos tocando em pontos no infinito.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Verão (-2)


Olhava incrédula para ela fumando um cigarro. O rosto emoldurado pela fumaça. O quarto de paredes de madeira pintado de branco. Um descascado aqui, outro acolá, a janela de vidros largos por onde entrava o frescor da maresia. Ela, que nunca vira com um cigarro entre os dedos, fumava. Ela que há muito, muito pouco tempo, era apenas uma amiga. Os cabelos longos cacheados sobre os ombros, os seios fartos, de uma nudez de naturalidade quase indecente. Os olhos serenos do amor consumado. Então era isso, será que era mesmo isso o que se denominava amor? O sangue acelerava pelas veias, o coração palpitava se ela a encarasse nos olhos. Na falta de um gesto pequeno que fosse, levantou-se em direção ao banheiro. No caminho, um gato dormia sobre um par de havaianas.

domingo, 22 de novembro de 2009

Verão (-1)



Saiu do chuveiro com a toalha sobre os ombros, primeiro secou o rosto, depois as gotas de água escorrendo pelas pontas dos cabelos, segurou a toalha pelas pontas com ambas as mãos para enxugar bem as costas. Lembrou-se de voltar a ginástica na próxima semana, precisava desenferrujar os movimentos. Com a toalha de rosto desembaçou o espelho para se reencontrar remoçada, menos quantos anos?!Que espanto. Tirou da bolsa o batom, e pela primeira vez sentiu a volúpia do contato do vermelho bem fechado com seus lábios. Abriu a porta do banheiro com um certo frenesi, sobre a cama ela dormia. As pernas levemente abertas, os pêlos pubianos à mostra. Oferecida e indefesa. Abateu-se sobre ela o presente, a vida presente, o que lhe parecia ser o mundo real, olhou no relógio o avançado da hora. Acordava assustava e na pressa, bateu a porta despertando-a do sono profundo. No elevador pensou que precisava mesmo era da sua rede na varanda e de um copo de martine bem gelado.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Verão (0)

serenade for the doll

Adoraria usar o mormaço como desculpa, mais uma onda de calor embotava os pensamentos na pequena cidade de Paratintins. Desde as idas horas da manhã que lembrava do ocorrido sem conseguir explicá-lo, matutava incrédula estirada sobre a rede na varanda com um copo quase vazio de martine acariciando duas pedras de gêlo. No suado do copo via desenhar-se entre gotas um detalhe de seu rosto. Por vezes parecia formar um canto do olho, depois o trejeito da boca, e numa sacudidela forte desfazia-se a fantasia. Passava por ela uma quente tarde de dezembro.

domingo, 8 de novembro de 2009

Deu no jornal

Não é a toa que o caderno de esportes e economia venham lado a lado nos jornais, ambos são uma caixinha de surpresas. Mesmo que se troquem os atacantes/diretores, as regras não mudam. Palpite é o que não falta. Cada um diz o que quer. E agora em meio a crise, para ajudar os inescrupulosos indústrias e bancos, que por anos à fio viram seus lucros aumentarem através do trabalho alheio, o povo paga. Auxílio finaceiro, como sempre, só para os ricos. Aqui e lá fora. O caderno de futebol ao lado distraindo os olhos das mazelas do mundo. Pão e circo para todos!

sábado, 24 de outubro de 2009

O corpo de cada dia


Faz dois meses deixei de escrever: ela me consome, eu me consumo entre quatro paredes. Faz dois meses não abro janelas pra ver tudo o que já vi antes, a copa das árvores, os carros na rua, procuro novidades no ar nauseabundo enclausurado por paredes maciças, traço a cada dia minha novidade no corpo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Moça na janela



Era um abafamento de dar nó no corpo, as entranhas todas ressecadas, ela bebia um copo de água atrás do outro numa tentativa inútil de sentir suas células irrigadas. A jarra na mesa ao lado do sofá, o copo na mão direita e a televisão ligada no horário do telejornal da noite. Da janela vinha o bafo quente da boca escancarada da noite. A balela de sempre na televisão, crise aqui e acolá, violência acolá e aqui. Estendeu o pé sobre a almofada suja, apertou os olhos com força esperando que o fantasma da imagem sumisse, subiu e desceu com a mão o bombril pela antena na tentativa de melhorar o sinal. Desistiu. Foi até a janela e com a mão delicada tirou a cortina de chita da frente do seu campo de visão para ver o esgoto que corria como um riacho rua abaixo. A lua se escondia por detrás de nuvens carregadas, a tempestade se armando. No final da rua três crianças brincavam com uma bola já molhada do esgoto, um cachorro mal tratado corria atrás da bola no que parecia ser a sua primeira alegria do dia.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Memórias de chuva


serenade for the doll

le ..n...t.... a..... m......e..........n..............t..................e

g........t.......j...........a.........v
o.......e.....................
........................................................a

do meu corpo

a presença
do seu

sábado, 26 de setembro de 2009

Demasiado ar

serenade for the doll

O telefone é um poço de ansiedade, estou aqui a três horas, dezesseis minutos e cinco segundos com ele no bolso. Talvez. Enquanto ele não toca fico na expectativa, que pode ser boa, que pode ser ruim. O melhor mesmo é esperar, uma vez que ligue, o coração palpita, os pensamentos se confundem, saem contradições pela boca. Ela se foi faz três dias, foi comprar cigarros com uma mochila as costas, com intenções a frente. Primeiro um certo alívio, as roupas todas pelo quarto, a louça em cima da pia, o esparramar-se na cama, a boca muda. Respiro há três dias, começo a sufocar esse exagero de ar não compartilhado.

sábado, 12 de setembro de 2009

Manhã de sábado de uma sexta intensa


Eu sou a moleza dos sábados de manhã, e você?
A vontade que deixa a moleza de lado e faz o que parece que tem que ser feito.
E o que tem que ser feito?Não pode esperar?
Se pudesse esperar não era vontade pura, vontade quando dá mesmo, é insuportável.Dilacera a espera.
Pois bem, nesse instante tenho uma vontade insuportável de ter moleza! Eu sou esse gato aí de cima.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Filhas


Satisfeita! Não de barriga cheia, como dizem os bebês. Depois, um peido retumbante surpreendeu a todos, e Larissa correu em volta da mesa procurando pela mão amarela. Sua mãe sorriu sem graça entre gargalhadas alheias. Que noite! Fazia quinze dias havia combinado: não esqueça que na sexta feira do dia treze ela dorme na sua casa. Está acertado! De última hora uma viagem de trabalho, e agora Larissa desinibida troteava no contorno da mesa verificando uma a uma as palmas das mãos. Levantou-se da mesa para buscar a torta sobre a pia da cozinha coberta por uma calda de chocolate espessa e aveludada. A convidada, especificamente para este jantar pelos amigos, levantou-se no seu encalço no intuito de ajudar, com o preciso interesse em alguns segundos de intimidade. Larissa correu entre as pernas da mãe e com um enorme sorriso possessivo encarou a estranha. Num pestanejar, entre três pares de mãos distribuíram-se guardanapos, pratos, colheres e torta. Elogios vieram dos quatro cantos, e da convidada um gracejo demorado. Por debaixo da mesa sucedia um concurso imaginário de sapatos de única jurada. Larissa, venha logo comer a sobremesa. A água sobre o fogão fumegava avisando que era hora do café, e numa segunda vez a dupla de outrora deslizou furtivamente à cozinha. Por alguns instantes os olhares na cozinha aguardaram a chegada da onipresente Larissa. Os ouvidos atentos perscrutavam um som diferente e, na infinda indecisão, prepararam mudas o café. Larissa, aconchegada no tapete embaixo da mesa, dormia já o seu quinto sono. Num olhar cúmplice mãe e convidada suspiraram de tranqüilidade.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Dissabores

Uma tênue nuvem de fumaça escapulia pela porta entreaberta. A arquiteta fuma a intervalos contínuos. A languidez postada sobre a cama numa hora avançada da noite. Uma sombra na parede anuncia a chegada, um minuto de silêncio é o sinal para a baixar a guarda. Nos fitamos. Do lado de fora da janela o barulho da chuva constante de inverno enerva os dias, os humores inconstantes. Calar, como quem cede, ou como o triunfo orgulhoso. Não há heróis nessa guerra, nunca há heróis em guerras, apenas um desvio de conceitos. Somos aquilo que podemos ser. As palavras reproduzindo meias verdades. Sento na cadeira olhando pingos espessos de chuva escorrendo pelo vidro, ela acende mais um cigarro ganhando tempo. Qualquer movimento brusco foi-se a trégua, a última centelha queimando, ardendo. Deito ao seu lado na cama, devagarzinho, me aninhando entre cobertas. Uma mão urgente pega na gola da minha camisa, quase rasga, me puxa para perto, bem perto, quase dentro, e assim ficamos por longos minutos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Sonhos de viagem

Os olhos se perdem na imensidão de colinas verdejantes deslizando no horizonte, as árvores longínquas parecem arbustos navegando num mar tranqüilo, junto a janela o tempo passa correndo,listras brancas e negras perseguindo-se mutuamente, o som constante dos pneus rodando sob o asfalto embala o sono numa tarde de domingo, num domingo de viagem. Sonhos intermitentes sacudidos por sobressaltos, ela aparece e desaparece, ela acompanha o vai e vêm de imagens fugazes, ora observadora, ora atuante. A impotência frente a beleza que se oferece, num instante estico o braço buscando envolvê-la e um quebra molas interrompe o movimento, num outro tento falar-lhe de amores e uma curva me desperta, assim viajamos as duas numa seqüência infinita e ardilosa de encontros e desencontros.

domingo, 19 de julho de 2009

O Brasil, samba que é...

A classe dominante brasileira tem uma posição muito confortável. Ela pode reclamar que é explorada quando olha para os EUA, e se comportar como exploradora quando olha para os índios, negros e camponeses. É o melhor de dois mundos. Você consegue explorar o explorado e fingir que é explorado diante do explorador, e no intervalo vai passar as férias em Paris.

Outra questão é a própria idéia de desenvolvimento. A humanindade não pode mais crescer. Sou a favor do crescimento zero, de caminhar para uma redistribuição em escala planetária da riqueza. Frases como "continuem consumindo" e "comprem mais carros" são criminosas do ponto de vista da espécie. Nesse sentido, a palavra desenvolvimento é péssima, e a palavra crescimento pior ainda. Nem todo desenvolvimento envolve crescimento econômico; o PIB não mede porcaria nenhuma. O Butão criou um índice de felicidade interna bruta (FIB). Parece piada, mas talvez não seja completamente idiota. Os EUA, que tem um PIB bem maior que o do Brasil, não creio que teriam um índice de felicidade interna bruta maior que o nosso. Não parecem um povo particularmente pacífico, alegre, saudável. Ao contrário: toda semana alguém mata quarenta escolares em algum lugar do país e a obesidade é galopante. Nada que nos faça mirar nos EUA como exemplo da civilização. O Brasil precisa se desenvolver: aumentar o senso de equidade, de justiça, aprender o que é prioritário.

palavras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.

domingo, 12 de julho de 2009

Casamento



Quem visse Janaína cruzar a rua àquela hora do dia, com um sol luminoso a confundir sua pele translúcida com réstias de sol, jamais pensaria que aquele era um dia ruim de sua vida. Vinha ela às pressas, num vestido etéreo, do casamento de sua prima. A festa ainda agora começava, as pessoas procuravam por seus nomes em delicados cartões de papel sobre a mesa, Márcia estava feliz por compartilhar a mesa com Tadeu – adivinhavam-lhe os pensamentos, a família Souza toda reunida espremia-se em volta da mesa de modo que todos se acomodassem, a noiva e o noivo, agora já mulher e marido ocupavam a mesa central numa posição em que todos os mantinham à vista, e Janaína voltava para casa. Havia algo de muito humano dentro dela, de muito dolorido também, algo que sua tenra idade debatia-se em compreender, como explicar a si mesma aos onze anos uma percepção intuitiva de que perdia o desejado amor da prima.

domingo, 28 de junho de 2009

Essa criatura homem

mais Ítalo Svevo e A consciência de Zeno:

A vida atual está contaminada até as raízes. O homem usurpou o lugar das árvores e dos animais, contaminou o ar, limitou o espaço livre. Mas o pior está por vir. O triste e ativo animal pode descobrir e pôr a seu serviço outras forças da natureza. Paira no ar uma ameaça deste gênero. Prevê-se uma grande riqueza... no número de homens. Cada metro quadrado será ocupado por ele. Quem se livrará da falta de ar e espaço?Sufoco só de pensar nisso.

E infelizmente não é tudo.

Qualquer esforço de restabelecer a saúde será vão. Esta só poderá pertencer ao animal que conhece apenas o progresso do seu próprio organismo. Desde o momento que a andorinha compreendeu que para ela não havia outra vida possível senão emigrando, o músculo que move as suas asas engrossou-se, tornando-se parte mais considerável do seu corpo. A toupeira enterrou-se e todo o seu organismo se conformou a essa necessidade. O cavalo avolumou-se e os seus pés se transformaram em cascos. Desconhecemos as transformações por que passaram alguns outros animais, mas elas certamente existiram e nunca lhes puseram em risco a saúde.

O homem, porém, este animal de óculos, ao contrário, inventa artefatos alheios ao seu corpo, e se há nobreza e valor em quem os inventa, quase sempre faltam a quem os usa. Os artefatos se compram, se vendem, se roubam e o homem se torna cada vez mais astuto e fraco. Compreende-se mesmo que sua astúcia cresça na proporção de sua fraqueza. Suas primeiras máquinas pareciam prolongamento de seu braço e só podiam ser eficazes em função de sua própria força, mas, hoje, o artefato já não guarda nenhuma relação com os membros. E é o artefato que cria a moléstia por abandonar a lei que foi a criadora de tudo o que há na Terra. A lei do mais forte desapareceu e perdemos a seleção salutar. Precisávamos de algo melhor do que a psicanálise: sob a lei do maior possuidor do maior número de artefatos é que prosperam as doenças e os enfermos.

Talvez por meio de uma catástrofe inaudita, provocada pelos artefatos, havemos de retornar à saúde. Quando os gases venenosos já não bastarem, um homem feito como todos os outros, no segredo de uma câmara qualquer neste mundo, inventará um explosivo incomparável, diante do qual os explosivos de hoje serão considerados brincadeiras inócuas. E um outro homem, também feito da mesma forma que os outros, mas um pouco mais insano que os demais, roubará esse explosivo e penetrará até o centro da Terra para pó-lo no ponto em que seu efeito possa ser o máximo. Haverá uma explosão enorme que ninguém ouvirá, e a Terra, retornando à sua forma original de nebulosa, errará pelos céus, livre dos parasitos e das enfermidades.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Um recital sem quarteto de cordas


Tédio
profundo tédio
som, som, som
palavras
repetidas palavras
para efeito, defeito sonoro
prefiro o Noll
e a buceta

sexta-feira, 12 de junho de 2009

A Consciência de Zeno (1923)

de Ítalo Svevo:

"Quis mesmo muito bem a Ada naquele momento, e é uma coisa bastante estranha querermos bem a uma mulher que já desejamos com ardor, que não foi nossa e que agora nos é indiferente. Em suma, chega-se dessa forma à mesma condição em que estaríamos se ela tivesse então cedido ao nosso desejo, e é surpreendente poder constatar mais uma vez como certas coisas pelas quais vivemos acabam por ter importância insignificante."

sexta-feira, 22 de maio de 2009

À deriva

serenade for the doll

Uma descarga de futuro nos nervos nesta sexta feira. Um destes dias em que a mente, por ousadia descabida, põe-se a planejar o dia de amanhã, mais precisamente, as próximas férias, como se pudesse ter o controle sobre um vôo, um hotel, uma paisagem, um dia de sol ou de chuva. Assim foram checados diversos vôos, localizações de hotéis, apartamentos, preços, proximidade com pontos turísticos, e o frio na barriga crescia pensando na antecipada alegria de se viajar com quem muito se gosta. O casaco invernal que terá de ir na mala, o cachecol vermelho, as luvas pretas, botas, adoradas botas, o abraço caloroso no meio da rua. Sinto já o cheiro do café fumegando na xícara, as páginas dos livros tocados, sentidos, vistos, o barulho do rio ao longo do caminho, as folhas das árvores farfalhando no parque, os quadros e esculturas enchendo os olhos de luz, o vento cortante no rosto, o bar aconchegante descoberto numa caminhada despretensiosa, e a noite, na cama quente, o seu corpo enroscado no meu. Reserva? Nenhuma, deixo por conta do divertimento do inusitado.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Mi sexo

na falta de tempo para inspiração, um lindo poema de Cristina Peri Rossi (do livro Estrategias del Deseo):

Mi sexo

Mi sexo no es un buen consejero.

Mi sexo no es de fiar.

Mi sexo sabe de mí cosas que yo no sé,
y tiene inclinaciones que me sorprendem
niña impúber que ha menstruado antes de tiempo.

Mi sexo me conduce a donde no quiero ir
y habla un lenguage mudo
hechos de gestos y de impulsos
que clamam en la soledad de la noche
como niños huérfanos.

Si conversara más a menúdo com mi sexo
posiblemente podríamos llegar a algún acuerdo:
o yo lo mato a él
o él me destruye a mí.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Pintada




A nudez do seu corpo sobre a cama, a sombra titubeante da perna no lençol branco, a luminária desligada e velas espalhadas pelo quarto, a árvore de luz sobre a cômoda, três ou quatro velas pelo chão. Tenho na mão o pincel fino, elegante, carregando escritos que inadvertidamente surgirão nas pontas das cerdas, onde se refugiam desenhos que pouco a pouco transferem-se sobre o seu corpo, delineando os seios, cobrindo o ventre, enfeitando o corpo para o desenlace da noite.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Uma sapa na cozinha



Macarrão ao curry:

Meio quilo de contrafilé.
Uma cebola grande.
Uma lata de creme de leite de 200 ml.
Azeite extra virgem.
Curry.
Pimenta calabresa.
Sal.
Meio quilo de macarrão.

Coloque a água para o macarrão para ferver (muita água). Corte o contrafilé em quadradinhos e cubra-os com o curry por todos os lados, acrescente sal e pimenta calabresa à gosto. Pique a cebola e frite no azeite(pouco azeite), quando ela estiver dourada acrescente o contra filé já temperado aos poucos, não deixe juntar água durante a fritura(a idéia é que eles fiquem mal passados por dentro). Depois de frito acrescente uma lata de creme de leite com tudo (não retire o soro). Está pronto o molho. Junte ao macarrão e bom proveito. (acrescente queijo parmesão por cima se gostar).

sábado, 18 de abril de 2009

Manhãs de outono




Acordei antiga, coisa do vento de outono entrando pela fresta da janela, me traz ares de infância, embora o frio geográfico de agora esteja minimizado. Antes, saía da cama feita com três cobertores e vestia, sobre o pijama, a calça jeans, o pulôver tricotado a mão e um casaco mais sobre tudo isso. O frio de dentro concorria com o frio de fora, as paredes de alvenaria guardavam o frio por dias, a amplidão do pé direito deixava circular o minuano por qualquer fresta. Descia pela manhã as escadas de degraus altos e corrimãos de madeira até a cozinha, porta fechada. Lá dentro o calor de um fogão a lenha desde cedo fumegando, passara a muito a hora do primeiro chimarrão. Às vezes, escondido, vinha um gato dormir aconchegado embaixo do fogão de puro ferro. Na chapa quente do fogão aquecia uma torrada feita com manteiga, queijo e presunto, apertada com força por uma tampa de panela por alguns minutos, saía crocante, cheirosa. Ensaiava com a torrada uma xícara de café em frente ao fogo, sentada numa cadeira e com os pés dispostos em frente a tampa aberta do forno. Depois, finalizando as manhãs de outono, vinham os pinhões assados sobre a chapa acompanhados do chimarrão pré-almoço.

domingo, 5 de abril de 2009

Música

Nem só de pó era feita a mulher, conclui depois de ouvir o som afinado saído de seu violino. De ver, com os olhos bem fechados, a sua face concentrada, ao tocar um instrumento, gravada no fundo de minha memória. De sentir, a dois metros de distância, a energia vibrante de seu corpo ereto se esvaindo em música. Ela era também a solidez da dedicação, a alvura dos dedos dedilhando as cordas, o desejo inconscientemente desperto a sua volta, a vida se pronunciando em acordes.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Inconstâncias




Era assim, ela ia e vinha em espasmos nada regulares. Eu não mudava mais de casa com medo de perder o contato. Controlava a vontade de deixar a porta entreaberta. Eu também ia e vinha entre outras mulheres, era um momento de espera, eram os planos que não se definiam. Quando ela em casa, passávamos dias trancafiadas, a secretária eletrônica abarrotava de mensagens de ligações não atendidas, fazendo amor e versejando sobre mil temas, falávamos do aquecimento global, de um novo escritor que nos interessava, de um filme no cinema, do tempo de norte à sul, até mesmo de dias de chuva na Finlândia. Seu corpo, uma eterna novidade nestas idas e vindas. Então, sem mais nem porquê, nos enchíamos e nos provocávamos com aventuras amorosas alhures, reais ou inventadas, até o insuportável de mais nada falarmos, nessa hora ela saía ou eu saía pela porta, tudo muito bem entredito. Nos afastávamos por um interstício, longo ou pequeno?Quem sabia?

quarta-feira, 18 de março de 2009

Apressada

Aqui é dia, é quente, é verão. Ela acende a luz do quarto e não desliga o ventilador, abre a janela e sorri com os seios à mostra para a vizinha que fecha a janela correndo. Deixa deslizar sobre o corpo a água fria refrescando o exterior, se aproxima da cama e, de longe, digo, com o corpo afastado e os lábios próximos, beija o sorriso na face da outra, ele engrandece. Ela corre para a cozinha fugindo do pau duro matutino da moça se espreguiçando na cama. A água translúcida atravessa o pó preto do café aromatizando a cozinha. Ela leva até a cama um pão na manteiga apertado na frigideira, e duas xícaras de café feito dois canos fumegantes. Apressa a dormida. Acaricia a dormida. Lambe a orelha da dormida. A ex dormida, de pau duro, olha com um largo sorriso e rememoria a apressada de que é sábado.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Big brother

Primeiro foi logo na entrada, acima da mesa, sobre a televisão, que agora televisiona a monotonia do entra e sai de personagens quase sempre repetidos. Depois, num dia quente e já com o dedo enfiado no nariz, a vi dentro do elevador, botei a língua para fora na sua direção no mesmo instante, tamanho desaforo instalar-se sem avisar. Noutro dia, enquanto lésbica feliz, lançava ao ar beijos na direção da amada na garagem do edifico, flagro num lampejo a espiã malfadada. Agora, quase acostumada ao big brother domiciliar penso já em, na próxima reunião de condomínio, sugerir câmeras nos vasos sanitários dos apartamentos para que vizinhos e porteiros, de perto vislumbrando o íntimo do ser humano, possam enfim também ocupar-se da saúde dos moradores.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

No carnaval da avenida



Entorpecida de cerveja e cachaça ela beija. Na mesa do bar traquina um pé. Na avenida samba reinando. No brilho da purpurina ela é a que mais cintila e do alto do seu salto governa um mundo. Na quinta feira depois das cinzas, vencedora ou perdedora, ela tira a camisa amarela, a máscara dos olhos, a fantasia dos pensamentos, toma o ônibus às cinco da manhã e por duas horas cochila no sacolejo, primeiro pelas vielas estreitas, depois por largas avenidas, e enterra o carnaval na faxina da madame.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Nova era


No nome a sina, Jesus. A mãe lavadeira esperava salvar o filho da mesma chaga de miséria. Nasceu ele com os olhos verdes e a pele morena, um milagre dizia a mãe. Seu primeiro banho foi no rio de águas barrentas, batizado pela mãe natureza. Seu corpo atlético inspirou-se nas cachoeiras. Na cidade grande foi levado às passarelas, onde desfilou por vielas estreitas roupas que nunca seriam suas. Numa noite de sono agitado, Jesus feito homem tirou na loteria o bilhete sorteado. Entre afagos e afetos, desfila agora desnudo nos braços de Madonna.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Noite de setembro

serenade for the doll


Foi em setembro, ela apareceu a primeira vez naquela primavera, havia desaparecido por longos oito meses, bateu na porta como sempre havia batido e entrou dando boa noite como se tivéssemos nos visto na semana passada. Ela entra e diz que hoje em dia ninguém é real, ninguém é de carne e osso, todos indo sempre, líquidos escorrendo pelas mãos, eu digo que ainda estou aqui, ela diz que não importa, que somos minoria, eu digo que vale a pena, alguma coisa vale a pena se a alma não é a que pena e sorrio buscando dentro dela um riso. Ela hoje está vestida de noite, eu de paciente ironia, abrimos uma garrafa de vinho tinto, servimos em glamourosas taças e sentamos de frente para a janela com os pés sobre o parapeito, lá fora também é noite. Ela diz para eu largar os livros, que poetas e tontos se compõem de palavras, eu digo que ser tonta é uma dádiva. Ela enrola o echarpe no pescoço protegendo-o do frio do vento, ficamos ali a ver navios flanando na noite, adormeço com a cabeça recostada no seu ombro e gentilmente ela me conduz a cama. Dormimos abraçadas até de manhã.


sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

A viúva



Numa casa respeitosa das tradições convencionais, depois de um almoço de família, depois de uma tarde de conversas, de forró de mão na mão, da mão demasiado apertada sobre a dela, dos olhos nos olhos disfarçados da viúva com filha de dez anos, quase na hora da partida, na hora do fim do dia mais que demais agradável, a viúva pergunta:
Você não quer ir ao banheiro comigo?
Hum?ela responde sem entender.
Ao banheiro, só um pouquinho!Insiste ansiosa.
Não obrigada, não estou com vontade. Ela responde entendendo.
Mas mãe, você pode ir ao banheiro sozinha.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Vestido


serenade for the doll


O som do motor do carro se afastando, zunindo no ouvido feito mosca varejeira presa em quarto escuro, a terra em pó no meu rosto parado no portão. O azul do carro esmaece, se confunde com o azul do céu, ela foi por essa estrada sem caminho, como se sorrisse, fugindo. Os monstros em cima do muro de tijolos caiados, esperando, esperando, caminhando daqui para ali, de lá para cá. Ele segue pelo céu azul, como na música, pega o trem azul, o sol na cabeça, o calor na cabeça. No corpo, a febre. Eu estendo a mão, as duas unidas em formato de concha, aqui faz frio nas minhas mãos do lado de fora do cobertor, em concha as ofereço, ela pega, me olha e não diz nada. O trem chega na estação, elas descem, uma a uma pela porta da frente, o carro tem só duas portas, o vestido dela prende no banco e se rasga, um rasgo enorme desde a perna até onde o céu encontra o mar. A alvura da pele ofusca os olhos fugida pela fenda no azul escuro do tecido. No quarto, ela fecha a cortina guardando para mais tarde o facho de luz forte do dia que se esmerava pela beirada da cama.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Campanha: Uma semana sem cinema

Contra os preços abusivos dos ingressos de cinema no Brasil, propomos uma semana sem cinema. A idéia é fazermos uma mobilização nacional, de 5 a 11 de janeiro de 2009, na qual nós, cinéfilos e afins, não assistiremos aos filmes nas salas de cinema de nossas respectivas cidades.

O objetivo da campanha é mostrar nossa indignação com os preços elevados e excludentes da entrada inteira e com o projeto de lei que limita em 40% a venda de ingressos, com metade do preço, para estudantes e idosos em todo país em eventos, tais como: cinema, teatros, shows, eventos educativos, esportivos e de lazer. Segundo reportagem divulgada na Folha de São Paulo, esse projeto foi aprovado em dezembro (2008) por 14 dos 21 senadores, numa primeira votação. Ainda haverá uma segunda cuja data não foi divulgada.

Alugue ou baixe um filme. Mobilize-se e divulgue para os amigos!

domingo, 23 de novembro de 2008

Madrugada

Acordo na madrugada faminta. Foram diversos dias me alimentando sabe-se lá do que, e se ela quisesse se livrar de mim teria sido o momento, eu talvez tivesse partido se estivesse decidida como a imagem de decidida que ela me passava. Vejo que ela mentia. A gente sempre mente, ás vezes espera para ver se o outro insiste, como o outro também mente, às vezes insiste, às vezes não. Faz parte. Ela dorme na cama, mesmo dormindo deve arquitetar alguma coisa. A parte do corpo descoberta é linda, pudera me apaixonei.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

A arquiteta

Passo no seu escritório na hora marcada, ela de tailleur como pede o figurino, eu de jeans e camiseta sem a menor cara de cliente. Ouço pelo interfone sobre a mesa da secretária ela dizendo para deixar passar o próximo cliente, eu. A porta se abre, ela de cabelo preso na nuca, as mãos livres se soltam sobre o meu corpo num boa tarde demorado. Molho as calcinhas, e agradeço não ter um pinto nessa hora. Digo que vim para leva-la a passear, ela diz que já sabia, trocando as sandálias altas por um tênis baixo guardado no armário. Vamos pela rua apertada de tanta gente, é quase hora do rush, vamos a um café e peço um champanhe, sua bebida preferida. Ela diz que não, me pega pela mão e diz que vamos a outro lugar, tem outros planos. Eu ainda espero os planos se fazerem em mim. Pega o carro e vamos a um lugar no centro da cidade, um puteiro, ela diz que é para comemorarmos ali, esse é o lugar onde se fazem grandes comemorações. Na porta da casa, o leão de chácara é solícito, boa noite dona. Uma puta se aproxima, pergunta se queremos companhia. A arquiteta deixa a garota falar, pede drinques ao garçom, bebemos e conversamos como velhas amigas. Alguns homens no local olham para a mesa com interesse. Ela faz questão de não deixar claro se somos freguesas ou putas. A garota enfim diz o preço do programa, e diz que gosta de comer mulher, que ela mesma tem uma namorada, mas que esta nunca vem para não dar confusão no trabalho. A namorada não gosta que ela saia com outras mulheres, mas ela prefere. Que assim seja. Concordamos com o preço e não falamos mais nisso. Bebemos muito, as três, tem um quarto ali mesmo, subindo a escada, diz a garota. Esse é o primeiro programa da sua noite, ela cobra por hora, tanto faz ficar com a gente ou sair para o segundo turno. Tem uma cama grande, um chuveiro, um telefone. Ligamos para o bar, pedimos mais bebida. A garota se apressa em tirar a roupa, primeiro as nossas, digo que espero um pouco, ela despe a arquiteta, eu olho, ela passa as mãos pelos seios da arquiteta, demora a mão na cintura, escorre pelas coxas os dedos, a arquiteta me olha nos olhos durante toda a trajetória das mãos, sinto ciúmes e não movo, ela me convida a participar, sorri, digo não. Assisto. Fico excitada.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Vasta cidade



A cidade é vasta como o moral das pessoas. As oportunidades parecem cintilar em cada esquina e tudo é permitido. Surge a cada dia um esperto a convencer dez outros tolos de suas inexistentes habilidades. No que diz respeito às questões de governo, a certeza da impunidade faz multiplicar corruptos e falastrões confundindo a todos com discursos de palavras altruístas esquecidos logo após as eleições. Aprendemos, enfim, a usar as palavras de maneira leviana e cruel. Nessa grande cidade, todos se amam, inclusive àqueles que se conhecem na mesma noite, e ai de quem discordar desse pressuposto. Multiplicam-se os sociopatas, que circulam com altivez entre os mais variados grupos. Troca-se de roupa, como trocam-se os amigos e os produtos na geladeira. Vale mais um copo que uma amizade. Esvaziaram-se as palavras, perderam-se os gestos. Aprendemos e usamos diariamente, a antiga idéia de que a vida é um palco. O Rio nunca teve tantos palhaços e tanto público.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Dias nublados



Tenho fome, menstruo em breve, assunto de mulheres. Ainda mais quando a namorada também é uma mulher e os ciclos convergem para o mesmo período do mês. A fome quase sempre é desesperadora e não interessa muito qual seja a oferenda desde que comestível, a libido faz com que atravesse paredes em busca da amada no chuveiro, e o implacável mal humor ataca, por vezes transmudado em tristeza, que pode ser das grandes ou das pequenas. Assim somos nós, por vezes amáveis, por vezes insuportáveis. E nem me diga.


quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Como abrir uma porta



Primeiro, com a mão no formato de concha, aproxima-a devagar da maçaneta, como quem está prestes a tocar em telhado de zinco ardido de sol. Os pés um pouco afastados um do outro, um mais à frente, o outro mais atrás, mantendo uma distância confortável da porta, dessas que deixam o ar entrar e sair das narinas com facilidade. O braço que sustenta a mão no alto, que tanto pode ser o esquerdo como o direito dependendo das preferências, não está de todo esticado evitando forçar a articulação do cotovelo, encontra-se contraído. Forma-se um ângulo de aproximadamente cento e cinquenta graus entre o antebraço e o braço, numa altura desde o solo um pouco menor que a da mão que quase toca o gélido metal da maçaneta. A mente reluta por um instante, entre escancarar ou não a porta. O corpo se inclina de modo imperceptível, aproxima os dedos que enrijecem na certeza do toque da maçaneta, a mão se acanha na presença da haste metálica e aprisiona-a com os dedos. Apenas o polegar solitário se estende preguiçoso ao longo. Uma simples virada de punho e ouvimos o clique. Um suspiro mudo responde à réstia de sol que cruza a fresta, uma fresta maior, bem maior, espia sobre a cama o corpo em cochilo pós-almoço.

domingo, 19 de outubro de 2008

Não vá morder as Márcias


D´aprés OsMarcos



Abri os olhos e vi uma faixa negra em movimento na estrada, escuridão provocada por três lâmpadas queimadas. Havia postes? Nem sei. Acordei a tempo de perceber que dormira no guidão da bicicleta. Por pouco não acordei debaixo do caminhão de lixo. Chegava da cidade grande, de um apartamento na cidade grande. No apartamento tinha um cachorro, o Brutus. "Não vai morder as márcias, Brutus", disse Nanda. Nada deu certo, nem a inteligência, nem a burrice, nem a cama. Uma cama gicantesca. King size. Duas existências distantes. Duas distâncias.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Uma idéia simples



Uma idéia simples, silenciosa e influenciadora: nos dias 25 e 26 de outubro próximos, todos os eleitores do Gabeira para prefeito no Rio de Janeiro, vestirão uma peça de roupa verde para silenciosamente mostrar a nossa preferência política e influenciar os indecisos.

Vamos criar uma Onda Verde!