sexta-feira, 10 de fevereiro de 2006

Águia


Vestiu-se de águia antes de sair de casa, não dando a mínima para os olhares estranhos da família ao passar pela sala de estar. Era tão boa a idéia de voar que compensava qualquer esforço. De vez em quando chacoalhava as costas só para sentir as asas vibrando, faziam cócegas e imaginava que levaria alguns dias para se acostumar à nova vestimenta. O sol estava radiante e por um instante sombrio lembrou-se de Ícaro, depois apertou o passo e correu na direção da ponte. No caminho comprou uma garrafa de vinho e uma baguete que acomodou por debaixo da asa esquerda. Pensava em comemorar o seu primeiro vôo. A grama em contato com os pés despidos fazia miúdas cócegas, como se alguém ficasse a provocá-la com uma pena, desacelerou para escutar o quebrar de finos gravetos sobre seus calcanhares, a pele do pé estava afinando e vez ou outra uma pontada lancinante de dor lhe subia pelas pernas, colocou de volta os sapatos. Acomodou a garrafa de vinho perto do córrego para preservar o frescor e livrar-se do peso que esta assumira, tinha a vaga memória de que uma garrafa pudesse pesar tanto. A baguete ficou recostada entre galhos de uma robusta figueira, longe das malditas formigas. Tinha uma tarde inteira pela frente, e o grande momento tantas vezes em pensamento calcado podia ser agora posto em prática, aproximou-se do desfiladeiro e olhou para o infinito buraco sentindo uma certa tontura, controlável e esperada, colocou os pés juntos e colados na borda, retesou o corpo, fechou os olhos e deu um passo largo para trás, e mais um, e outro e mais outro, por fim parou, agachou-se, pegou uma pedra e marcou o ponto de partida. Um impulso viria bem a calhar.

Não contava com esse sol escaldante às duas da tarde, e senta embaixo da figueira apreciando a paisagem, uma coceira esquisita nas costas, se contorce mas seus braços já não tem a mesma maleabilidade, consegue no máximo abri-los retos num ângulo de quarenta e cinco graus com as costas, encosta-se um pouco mais ao pé do tronco e roça as costas mexendo os ombros pra lá e pra cá. Cochila por meia hora nauseabunda de calor e acorda sedenta, meio gole de vinho lhe cairia bem e sobraria ainda um bocado para a comemoração final. Mal consegue acomodar o abridor entre seus dedos para sacar a rolha, apóia o gargalo na boca com volúpia e se contorce num cuspe, que gosto horrível, mergulha a garrafa de vinho no riacho avermelhando a correnteza, depois a enche de água e agora sim saboreia um gole de água fresca. Ri de si mesma ao pensar na cara dos outros ao vê-la flanando no desfiladeiro. O processo argilosamente tramado, foram meses para a confecção das asas de penas de gavião, compradas pelo correio e enviadas para a casa de uma amiga, a fim de não levantar suspeitas. Quem poderia compreender um desejo assim ardente de voar.

Caminhou um pouco pelos arredores procurando por ninhos de formigas, hábito este que tinha desde criança, pra depois seguir as trilhas e imaginar-se um animal pequenino carregando duas ou três vezes... quanto era mesmo o número de vezes do seu próprio peso que uma formiga podia carregar, os números lhe aborreciam, o sentido estava escondido nas letras. Ela, uma formiga destemida e apressada se aventurando por caminhos tortuosos. Todo essa caminhada abrira-lhe o apetite e lembrou-se da baguete, a salvo no alto do galho a despeito de sua consideração pelo mundo formicídeo, desembrulhou o papel e começou a catar com os dedos a cobertura de gergelim, para logo em seguida dar ávidas dentadas nessa crosta crocante, dando-se por satisfeita ao ver diante de si a baguete desnuda.

Satisfeitos os instintos primários era chegado o momento, se moveu com dificuldade e estranhou o incômodo dos sapatos, os pés mal se acomodavam nesses tênis surrados. O corpo visivelmente mais leve cambaleava um pouco para um lado e para o outro, dava crédito à emoção. Chegou junto no ponto de partida ainda cedo marcado, mas seus passos haviam encolhido, a emoção de novo! Respirou fundo e pensou no seu futuro brilhante, correu em linha reta e pulou, em queda livre desesperada desvencilhou-se da fantasia e bateu asas, sim bateu asas e rompeu os sapatos velhos deixando a mostra garras afiadas. Por cima do ombro o reflexo da brancura das asas fez-lhe contrair os olhos, e em seu último pensamento racional bateu asas, era uma esplendorosa águia a voar no meio do precipício.

2 comentários:

Anônimo disse...

Voos, pequenos ou longos, cedo ou tarde, sempre serão necessários. Besos

Anônimo disse...

Quanta suavidade! E como a sua intimidade com a palavra se assemelha a uma relação amorosa: cheia de mistério, de sedução e, por fim, encantadopra entrega.