sábado, 18 de março de 2006

A estranha


Era a quinta vez que eu a via passar pela porta entreaberta por mãos masculinas e dar seis, por vezes sete, passos até a porta de saída que se fechava num estalido surdo de presídio, o tempo transcorrido era variado, nunca mais que um minuto embora podendo ser de milésimos de segundo dependendo da velocidade dos passos, reparava sempre nas sandálias, de couro e salto baixo, deslizando pelo tapete, depois vinham as pernas apressadas, trêmulas ou lentas cobertas por uma saia terminando logo acima dos joelhos, pernas roliças como o corpo, jaquetas diversas pouco diziam sobre essa mulher que se escondia e se revelava por detrás de uma porta, enquanto a minha sala se enebriava de Chico e Cartola. Com a sempre mesma revista polpuda entre as mãos tentava redimir-lhe o embaraço. A cada semana eu fantasiava um mistério seu nos meus minutos solenes, roubados do seu olhar sempre esquivo. Procurava ela a saída nessa sala apertada, de homem sóbrio com uma furadeira por debaixo da cama, e saía aos trancos e barrancos lentamente transpostos, fechada em si mesma, a perda da filha ainda era ferida viva, o desejo culpado de se dar na rua, num beco e depois lavada a carne ressurgir límpida e liberta, o intrincado jogo de poder no trabalho que jogava tão bem e por vias duvidosas a mantinham em situação confortável, ou talvez ainda, o sonho recorrente no qual despia com desejo a mesma mulher, sem rosto, sem cheiros, tocava o corpo cheia de pudores e depois acordava suada ao lado do marido. Fazia-me assim íntima de seus segredos, ouvinte da sua boca muda e solidária no escuso.

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